domingo, 15 de setembro de 2013

MORADAS



 




PREÂMBULO


Todo mundo, pelo menos uma vez na vida, já viu aquela microcena das formigas se encontrando e se reconhecendo rapidamente durante seus percursos de trabalho. E todos perguntam: o que é que elas falam uma para outra? Ou é apenas um mero sinal de continuidade da tarefa?


Uma coisa ou outra, o que ninguém duvida é que as formigas moram em lugares que são tão perigosos e incertos como as nossas casas e estão sempre em busca de coisas para matar a fome. E tomam os cuidados que deveríamos tomar para construir, manter e proteger os lugares onde moram.




MUDANÇAS


Já morei em 10 apartamentos num período de 35 anos; e 14 casas, entre 1961 e 2020. Tudo isso aconteceu em cinco cidades, num período de 60 anos. Somando o período anterior, dos meus pais e avós, temos 100 anos de coisas para contar sobre nós, sobre o nosso País e também os acontecimentos que mudaram o mundo.


Os intervalos nos quais ocorrem as mudanças foram períodos vividos com inquietação, a mesma pressa pela qual passam os pássaros ao terem de mudar e refazer seus ninhos.


E fico imaginando porque tem que ser assim.


Porque precisamos mudar?


Será porque temos que sofrer mudanças íntimas provocadas pelas situações que nos forçam a mudar de lugar?


É bem provável.


Em cada mudança sempre acontece outra mudança.


Nos filmes do Mazaropi sempre tem cenas de mudanças para relatar o sofrimento dos personagens ao ter que deixar um lugar e amargar a angústia do incerto.


Numa canção de Edu Lobo e do Chico Buarque - do disco Circo Místico - as mudanças dos atores circenses são definidas como “arte de deixar algum lugar quando não se tem pra onde ir”.







NASCENTE E POENTE


Nasci no Porto Tibiriçá (atual Presidente Epitácio) e hoje estou vivendo em São Vicente, na região metropolitana de Santos. Já havia morado em São Vicente, entre 1974 e 1984; depois mudei para São Paulo em 1985. Voltei para Epitácio na década de 1990, onde fiquei até 1997. No ano seguinte fui morar em Campo Grande – MS, cidade que acolheu muitos epitacianos. Voltei para São Paulo em 1999 e retornei para São Vicente em 2001.


Sempre que faço esse pequeno e confuso relato as pessoas logo reagem, tentando compreender os motivos de tantas andanças e mudanças.


Outra coisa, o que tem a ver São Vicente, uma cidade fundada no século XVI, com o Porto Tibiriçá, fundado no início do século XX?


O que poderia ter em comum essas duas localidades tão distantes, uma no litoral e outra no interior, e com quatro séculos de diferença?


Tudo a ver.


Muita gente do interior vem para a Capital, para o litoral e também vai para o exterior. Outros tantos fazem o percurso contrário. Sou do Porto Tibiriçá e creio que tem muitos e tibiriçaenses e epitacianos em vários lugares do Brasil e do mundo. Tem muita gente da nossa terra vivendo no litoral, em São Paulo, em várias regiões do Brasil, nos Estados Unidos, no Canadá, na Austrália, em vários países da Europa e até do leste europeu. É possível que tenha morrido algum pirangueiro no Word Trade Center. No Japão também tem epitacianos, é claro!


Creio que as pessoas vão para os lugares por algum motivo muito mais forte do que aquele que simplesmente funciona como pretexto e impulso para as mudanças. Mudar de lugar é uma busca de algo que se perde dentro de nós mesmos e que, na verdade, não está exatamente nos lugares para os quais a gente quer ir. Pode ser que aconteça, de acharmos o que realmente procuramos ao mudarmos de endereço, mas não é o lugar em si que é o motivo verdadeiro da procura, nem a causa real do encontro. São as coisas que acontecem, em determinados lugares, em determinados momentos que fazem realmente com que se façam algumas escolhas e essas decisões provoquem algumas mudanças na forma de ver e encarar a vida. Essa é a verdadeira mudança, a qual podemos realmente chamar de destino. Nas terras por onde se passa, descobre-se, se constrói um chão e nele o relógio do tempo avança numa sucessão de fatos e circunstâncias. Ao mesmo tempo o contato com esse chão aciona uma bússola, que nos conduz pelas veredas das decisões e escolhas. Aí a gente muda.


Certa vez eu fiquei fascinado pelo mar. Acho que isso também aconteceu com a minha mãe. Foi ela que teve a ideia de mudarmos para o litoral. Era um tipo de angústia que ela sentia na alma durante décadas e só curou parcialmente quando fomos viver próximo ao mar. Herdei isso dela. Meu pai sentia a coisa de forma contrária: vivia com o pensamento voltado para o sertão, lugar onde acreditava ter vivido os melhores momentos de sua última existência e, no final dela, conseguiu realizar o sonho de morar novamente em Epitácio. Seu corpo está sepultado no Horto da Igualdade, embora seu Espírito certamente não esteja lá. Aliás, sabe-se que algumas pessoas que foram viver longe fazem questão de ter seus corpos enterrados em Epitácio, pessoas que estavam vivendo na América do Norte e nunca tiraram Tibiriçá e Epitácio da memória sentimental.


O céu do sertão é bem diferente do céu do litoral; são cores e ventos diversos e opostos. O poente e o nascente repercutem de forma diferente no psiquismo das pessoas e isso influencia nas escolhas importantes que elas fazem na vida. Dizem que nascemos assim, mentalmente inclinados para um ou para o outro lado, para o sertão ou para o mar.






MEMÓRIA



Lembranças funcionam como um filme na cabeça da gente. Parece uma sucessão de quadros, como no cinema. Isso acontece a todo instante, mas de forma mais apurada quando estamos sós, pensando na vida. Muitas vezes esse estímulo vem de pessoas, de situações ou de objetos que nos remetem automaticamente ao passado. Vi numa foto a primeira casa em que morei. Era de madeira, tinha uma varanda enorme, dessas em que as pessoas ficam conversando despreocupadamente. Essa casa ficava na Belo Horizonte, em direção ao cemitério velho. Nessa foto estou no colo da minha “Madinha Manoela” (Manoela Borges), que não era parente do nosso sangue, mas tinha um vínculo espiritual muito forte com todos nós. Ela adotou e criou minha avó, retirante do sertão baiano; adotou e criou minha mãe e praticamente meus quatro irmãos. O meu irmão caçula, adotado de uma família ribeirinha do Porto XV, chegou para passar alguns dias em nossa casa, enquanto a mãe dele se recuperava de uma grave infecção no hospital. Por causa do destino, ficou para sempre, após o falecimento da mesma. Anos depois, uma tia nossa com dons mediúnicos, observando essa criança, identificou nela a figura do pai de dona Manoela Borges, reencarnado. Quando os meus avôs chegaram ao Porto Tibiriçá, vindos ainda jovens do Rio de Janeiro e da Bahia, também receberam de Dona Manoela abrigo e proteção. Dessa casa não lembro quase nada. Minha primeira lembrança vem da casa em Tibiriçá.


Nossa casa em Tibiriçá foi uma espécie de presente de casamento para os meus pais, dado pelo Tenente Gilberto, interventor militar do Distrito de Tibiriçá e que se tornou muito amigo da nossa família. O tenente era do tipo bonachão, sempre muito simpático e dele todos guardam boas lembranças por causa do seu gosto por festas populares, sobretudo as da época junina, quando mandava construir uma grande fogueira próxima ao mastro da bandeira. Construída a partir de 1954, a nossa casa, na verdade da Bacia, era uma das poucas construídas em alvenaria. Tinha cômodos grandes e um quintal espetacular, sem luxo, mas enorme, cheio de árvores frutíferas e ornamentais e de muitas possibilidades para fantasias de criança. A varanda em “L” revestida de ladrilho ocre, muito usado nos anos 60, servia para refrescar o corpo nos meses de calor.


Em frente de casa tinha um enorme campo de futebol, rodeado de árvores de cedro. Apanhei muito da minha mãe, nas pernas, com uma varinha seca que se acumulava debaixo dessas árvores. Embaixo de alguns desses cedros também tinham bancos feitos de madeira. Na esquina próxima tinha um que era o mais frequentado da vila, até altas horas da madrugada e por isso era chamado de “Banco do Pecado”.


Do outro lado do campo tinha algumas casas e um clube, onde funcionavam o serviço de autofalante, o salão de bailes e o cinema, este último sob a gerência do meu avô Carlos dos Santos.


Do período em que moramos nessa casa de Tibiriçá lembro de algumas coisas marcantes. Minha mãe chorando na varanda ao receber a notícia de que um tio nosso tinha tentado suicídio com um tiro na cabeça. A bala ficou alojada num dos ouvidos. Quando esse tio vinha em casa me deixava impressionado ao vê-lo, durante as refeições, mastigar vagarosamente para não sofrer a dor causada pelo projétil. Essa tentativa de suicídio, bem como outros casos consumados, teria uma repercussão ainda maior em nossas vidas, eu e minha mãe, nos deixando muito impressionados, servindo para nos aproximar de um grupo de pessoas que, desde1961, realizava um trabalho voluntário de prevenção do suicídio em São Paulo.


Outra cena marcante na época de Tibiriçá, na margem do rio, próximo a Bomba D´água, foi a chegada dos corpos de três funcionários da Bacia (Júlio César, e os irmãos Ênio e Fortunato) que morreram afogados durante um temporal noturno, quando pescavam. Júlio era paraguaio, casado com a tia Ester, irmã do meu pai.


Fui uma criança portadora de sonambulismo, cujas crises de febre emocional eram constantes e me faziam, tarde da noite, sentar na janela e denunciar para minha mãe a presença de “pessoas” andando no campo. Eram também os primeiros sinais da mediunidade. Moramos em Tibiriçá até 1967, período no qual a Bacia do Prata estava encerrando suas atividades e seu patrimônio sendo sucateado. Os moradores da Vila Tibiriçá, que poderiam por direto ter permanecido em seus lares, foram sendo pressionados a deixar as casas. O corte de energia e água, bem como ameaças indiretas foram algumas dessas formas de pressão, certamente estimuladas por alguns políticos e comerciantes de Epitácio interessados na rápida desmontagem do Distrito. O regime militar contribuiu também para que esse processo de desocupação da vila ocorresse de forma criminosa e impune. Os antigos moradores, a maioria gente simples e despolitizada, não tinha meios de reagir e se defender contra esses abusos, pois temiam represálias por parte dos poderosos.


Entre 1968 e 1970, já estávamos residindo em Epitácio, primeiro na Rua Maceió, em frente a um enorme terreno baldio no qual mais tarde seria construído o prédio dos Correios. Depois, na Rua Cuiabá, tivemos como vizinho até 1973 o Sr. Rogério Pelegrini, imigrante italiano e ex-colono da Fazenda Santa Cruzinha, antiga propriedade da família de Rachid Murad. Essa fazenda mais tarde foi dividida entre os arrendatários e antigos funcionários que tornaram-se sitiantes, muitos deles vindos de Cafelândia e foram os primeiros fornecedores da primitiva feira de Epitácio. Com muitos descendentes na cidade, seu Rogério vivia uma velhice simples e era para nós um forte exemplo de persistência e sabedoria. Viúvo, se mantinha ocupado cultivando uma horta e mudas de café; fumava curiosos cigarros de palha, cujo cheiro se espalhava por toda a vizinhança. Ele sempre contava para minha mãe que, ao ficar viúvo e com muitos filhos pequenos, recebia a ajuda do espírito da própria esposa para cuidar da casa.

A VILA


A Vila em que morávamos nos anos 60 era um antigo porto fluvial particular, propriedade de uma companhia de colonização fundada em 1905 por duas grandes famílias paulistas: os Tibiriçá e o Diederichsen. Ficava no extremo oeste do estado, na divisa com Mato Grosso. O rio Paraná ficava praticamente em nosso quintal. Meus avós já eram funcionários aposentados dessa empresa quando meus pais ingressaram nos seus quadros. Os aposentados tinham que mudar da vila e ceder suas casas para os funcionários que estavam na fila de espera, de acordo com a graduação profissional. Foi assim que meus avós fora morar na cidade e nós ficamos em Tibiriçá até 1967, quando a empresa fechou e a vila foi vendida par um grande frigorífico que se instalava na região, nas margens do rio e próximo da rodovia Raposo Tavares. Nossa casa era de alvenaria; as dos meus avós eram de madeira. O piso era de tacos e na cozinha, banheiros e na varanda era de ladrilhos vermelho-ocre, cujos cacos já eram moda para revestir os quintais. Na minha casa eles eram inteiros e eu adorava deslizar neles quando a varando era lavada com sabão em pó, para depois ser encerada. Em frente de casa tinha um imenso campo gramado, de passeio e de jogos de futebol. A maioria das casas estava de frente para esse campo, que era ornamentado por árvores de cedro. Entre elas haviam bancos de madeira, onde as pessoas se reuniam para conversar. O banco de uma das extremidades do campo era frequentado só homens e por isso era chamado de Banco do Pecado. As ruas eram todas de terra e protegidas da erosão por uma grama rasteira natural. Esse campo não existe mais. Foi usado na construção de casas populares. Mas quando existia era muito bonito, apesar de simples. Ele foi registrado em imagens em preto e branco, feitas pelo fotógrafo alemão Konrad Vopell, em 1938. Voppel desembarcou no porto de Santos como turista e registrou com sua lente os lugares mais interessante da Capital e do estado, sobretudo as colônias industriais construídas pelas empresas estrangeiras. Tibiriçá era uma delas, quando a Tibiriçá Diederichsen foi vendida para um grupo alemã, já com o nome de Companhia de Viação São Paulo Mato Grosso.


Konrad Voppel provavelmente era um espião nazista ou então um observador que trabalha para o governo alemão e também para empresas do seu país interessadas nos negócios da América do Sul. O trabalho dele era o registro das atividades econômicas que pudesse interessar aos investidores e também seus sócios que eram membros do governo. Antes deles esse trabalho de observação ou espionagem foi feito durante alguns anos pelo Zepeplin, o dirigível que rodou o mundo em busca de informações para Hitler. Com os acidentes e sabotagens, o Zeppelin se tornou inconveniente. Foi então que os fotógrafos voltaram ao seus antigos trabalho de peregrinos. No início dos anos 70 esteve em Presidente Epitácio e Tibiriçá um fotógrafo japonês, que registrou também imagens curiosas dos arredores da cidade, sobretudo da navegação fluvial. Na época havia rumores que o Japão estava interessado em terras da região centro oeste, para expandir negócios e aliar a pressão populacional com um plano de imigração em massa para o Brasil.


Os estrangeiros adoravam Tibiriçá. Essa mesma empresa mais tarde seria revendida para o mega empresário tcheco Jan Antonin Bata, fundador das industrias de calçados Bata, com filiais em muitos países. Bata acreditava que sua missão no mundo era fundar cidades e suas criações urbanas são famosas no mundo inteiro. Seu plano era criar uma ampla rede produtiva em Mato Grosso, interligada por ferrovias e o Porto Tibiriçá seria o ponto estratégico para recepção, distribuição no estado paulista e escoamento de exportação no porto de Santos. No Brasil, Jan Antonim Bata fundou algumas colônias agrícolas importantes como a de Batatuba (Piracaia), onde construiu uma casa maravilhosa para morar com a família. As ruínas dessa casa existem até hoje. Fundou em Mato Grosso as cidades de Bataguassu e Bataiporã, cujas terras no entorno foram transformadas em centenas de chácaras, sítios e fazendas, algumas delas verdadeiros latifúndios de gado de corte. Conheci uma dessa fazendas, na cidade de Anaurilândia, que possuía um sede espetacular, toda construída em madeira de lei, com muito aposentos e até uma sala de armas, muito comum nas fazendas, por causa das onças que atacavam as rezes. Nessa visita à famosa “Fazenda Estância Boiadeira” tive uma grata surpresa ao encontrar num quartinho fora da sede algumas caixas com antigos talões de embarque de gado assinados por um dos meus avôs – Comandante Maurício Xavier Duque- que chefiava o serviço de balsas de travessia de gado entre o Porto XV (MT) e o Porto Tibiriçá (SP). O gado era conduzido até a estação da Estrada de Ferro Sorocabana, em Presidente Epitácio, e de lá embarcado para São Paulo. Nesse mesmo esquema logístico de transporte fluvial e ferroviário funcionava também a extração de madeira, cujas toras eram levadas em chatas pelo rebocadores fluvial da mesma empresa. Só um detalhe: a antiga Companhia de Viação SP-MT teve que mudar de nome durante a guerra, pois foi encampada pelo governo federal, por ser de propriedade estrangeira e considerada de interesse para a segurança nacional. Passou então a ser denominada Serviço de Navegação da Bacia do Prata-SNPB, autarquia pública ligada a diversos ministérios, dependo dos governos eleitos nesse período. Meus pais ingressaram na mesma empresa onde trabalharam meu avós, morando na mesma vila, já na condição funcionários públicos , contratados e depois concursado pelo DASP, nos anos 1950. Essa situação durou até 1967, quando tivemos que mudar para Presidente Epitácio, pois a nossa casa seria ocupada por um dos funcionários do Frigorífico União. Mais tarde a propriedade do Porto Tibiriçá seria vendida para o Frigorífico Bordon e depois Swiftt, marca de aluguel para exportação de carnes.


Foi na varanda de ladrilhos da casa em Tibiriçá que ficou gravada em minha memória uma cena que teria influência marcante no meu envolvimento com o trabalho voluntário de prevenção do suicídio. Já de madrugada, minha chorando ao saber que um tio nosso havia tentado o suicídio dando um tiro em um dos ouvidos. A arma que ele usou pertencia ao meu avô. Mas nessa casa tivemos momentos felizes, festas de aniversário, jantares para amigos, páscoas, natais e revellions. Nessa época morava conosco a nossa madrinha Manoela Borges, pessoa que havia criado meus avós e minha mãe. Ela era separada, ex-mulher de Guilherme Borges, que foi gerente da Companhia de Viação e da Fazenda CIMA, em Indiana, onde minha mãe havia morado com elas, como filha adotiva. Eles tinham perdido uma filha de 17 anos, com tuberculose e minha avó, para minimizar o sofrimento deles, deixou que minha mãe fosse viver com eles. Em 1967, Dona Manoela recebeu em nossa casa uma visita muito especial de uma amiga de muitos anos. Era Dona Cacilda, que foi professora do meu pai na escola primária de Tibiriçá. Ela trouxe com ela os dois filhos, que eram músicos de grande sucesso e se apresentavam em todas as rádios e emissoras de TV. Chamavam-se Neno e Irupê. Naquele dia eles fariam um baile-show no clube da Sociedade Filarmônica 27 de Março, em Presidente Epitácio. Vieram acompanhados de outros músicos que formavam o conjunto The Jordans, para o lançamento do LP Studio 17, com o single “Tema de Lara”, do filme Doutor Jivago. A presença de todos eles na minha casa causou um furor em toda a vila. O povo invadiu o nosso quintal e ocupou a varanda e as janelas para ver os astros da TV e do cinema ( no filme O Puritano da Rua Augusta). Neno e Irupê foram depois componentes do RC 7, banda exclusiva do Roberto Carlos e que aparece em todos os filmes do Rei da Jovem Guarda. Uma lembrança grata sobre eles: em visita a Londres, já nos anos 70, eles foram reconhecidos num restaurantes com “músicos brasileiros” e tiveram uma rápida, porém curiosa conversa sobre a bossa nova e outros estilos de música “tropical” com dois artistas já bastante conhecidos na Inglaterra e no mundo. Eram John Lennon e Ringo Star. O encontro deles foi registrado numa foto bastante divulgada na internet.


JARDINEIRO





Recentemente perguntei a minha mãe quem foi João Puba e logo sua fisionomia grave transformou-se num sorriso, fruto de uma grata recordação de infância. João Puba era o jardineiro da casa da gerência do Serviço de Navegação da Bacia do Prata e que sempre demonstrou um grande afeto pela minha mãe. Pai de uma grande prole e originário do sertão de Minas Gerais, seu João Puba era cultuador da Festa de Folia de Reis em Tibiriçá e minha mãe e suas amigas eram encarregadas de arregimentar as crianças para abrilhantar a festa e não deixar morrer a tradição que ela tanto prezava. Pessoa de aparência e hábitos simples, seu João cumpria à risca as ordens dos superiores para manter a ordem e a beleza da Vila Tibiriçá como se fosse um grande jardim de todos que ali moravam.


Conta-se que no dia do falecimento de Armênio Ribeiro, administrador do porto e do Distrito, o velho jardineiro estava muito preocupado e logo cedo tratou de cuidar para que o enterro do chefe fosse realizado conforme a vontade do morto. Ele havia solicitado por diversas vezes para que não fosse esquecida sua última vontade ao partir de Tibiriçá. Aproveitando a fartura da época, Seu João logo se apressou, pois não havia muito tempo para que a tarefa fosse realmente cumprida. Os amigos vendo-o quase em estado de aflição, com medo de não conseguir cumprir o que havia prometido, tentavam dissuadi-lo a fazer somente o que fosse possível, mas seu João não concordava. Queria fazer tal qual fora bastante recomendado.


Graças a ele, o enterro, que seria realizado no antigo cemitério de Epitácio, teve um momento especial de beleza, gratidão e respeito pelo chefe que partia. O trecho entre a porta da Casa da Gerência até o Mata-Burro, próximo ao aeroporto, não era curto e também não era muito longo, porém, naquele dia triste e inesquecível, o chão, sem falhas no percurso, estava forrado de centenas pétalas de rosa e provavelmente milhares de pétalas de flores de primavera.


Mas o sorriso de minha mãe não foi somente por ter tido essa lembrança da agonia do velho amigo jardineiro e do enterro do Seu Ribeiro. Ao ser questionada por mim, ela respondeu prontamente:


“O Espírito do Seu João Puba foi a minha primeira vidência. Numa noite, logo após o jantar, enquanto o Padrinho Guilherme (Borges) lia na sala, intuitivamente me dirigi para a porta que dava para o quintal e deparei com um forte estrondo seguindo de um enorme e inexplicável clarão. Lá estava o Seu João Puba sob as árvores, com a mesma roupa simples, sorridente e segurando sua boa e velha enxada de trabalho. Era um sinal de que ele me acompanharia na minha tarefa espiritual até que pudesse aprender a lidar sozinha com a minha mediunidade”.


Em nossa família, todos, de alguma forma, tiveram contato com essas informações sobre as verdades espirituais e recebeu essa influência com as respectivas repercussões íntimas para cada um. Nenhum de nós, portanto, poderá alegar ignorância e falta de oportunidades, caso algum dia nossas consciências façam esse tipo de cobrança.


A desocupação da Vila Tibiriçá é um assunto que ficou pendente na vida da minha mãe e dos funcionários da Bacia do Prata. Foi um processo meio confuso, rápido e cheio de contradições. Políticos e empresários epitacianos tinham interesse em se apropriar do Porto Tibiriçá se aproveitando do processo de desmonte da bacia do Prata e a entrada do de um frigorífico na cidade, que utilizaria as casas para os funcionários. Uma negociata obscura que na época era difícil questionar, por causa do regime militar. Ninguém sabe até como uma área pública foi para nas mãos de uma empresa particular e parte desse patrimônio caiu nas mãos de especuladores imobiliários: áreas ribeirinhas de exploração do turismo, pastos de gado transformados em chácaras e sítios e o parque Figueiral e o aeroporto, que ficou sob posse da prefeitura. A parte que ficou sob interesse privado foi renegociado quando o Frigorífico Bordon sucedeu o União. O mesmo aconteceu recentemente com o JBS, depois de um longo período de desativação. A vila permaneceu ocupada por funcionários e ninguém foi incomodado, diferente do aconteceu com os moradores do tempo da Bacia do Prata.


CASAS



Quando saímos de Tibiriçá, moramos em em mais quatro casas em Epitácio, duas alugadas e as outras duas pertecentes aos meus avós, paternos e maternos. Nossos avós maternos viviam nu sítio em Mato Grosso, adquirido da Companhia de Viação SP-MT. A duas casas alugadas foram de estadia rápida e transitória. Meus pais estavam meio desnorteados, pois nunca tiveram problemas com moradia e achavam que a estabilidade da Vila de Tibiriçá duraria até a aposentadoria deles, como aconteceu com meu avós. Com a extinção do serviço fluvial de travessia, a maioria dos moradores teve que se mudar às pressas.

As casas dos meus avós eram completamente difrentes e refletiam exatamente o que eram intimamente. As duas eram de alvenaria, diferentes das casas alugadas que moramos anteriormente, que eram de madeira. Casas de madeira eram muito comuns na região. Já as casas de alvenaria eram raras e dizia-se que eram de “material”, no sentido de serem diferenciadas na concepção e construção. Mas haviam também casas de madeira muito amplas e bonitas, que aproveitavam bem a fartura desse pruduto ofecido pelas inúmeras serrarias e madereiras que haviam na cidade. Só em Epitácio, nos anos 1950, haviam 18 grandes serrarias, numa cidade com pouco mais de dois mil habitantes. Entretando, a habitação de material era sinônimo de ascensão social dos profissionais estáveis e abastados. Eram feitas por empreiteiros que atuavam na região, que funcionam ao mesmo tempo como engenheiros e arquitetos. Nesse período começam a surgir também as olarias, que fabricavam tijolos e telhas. Era um negócio dominado geralmente por portugues e espanhóis.


A casa da rua Cuiabá não era luxuosa, mas tinha a intenção de mostrar a conquista do novo status quo do meu avô. Ele era um funcionário público aposentado e também sitiante. Além dessa casa , meus avós possuíam uma chácara, de um pouco mais de um alqueire, que ficava no extremo da mesma rua, na direção da barranca do rio. Ali minha avó começou suas atividades leiteiras, que depois transferiu para o sítio em Mato Grosso, no município de Bataguassu. A casa da rua Cuiabá tinha um quintal enorme. Alí minha avó reproduziu num pomar de árvores praticamente todas as espécies frutíferas que existiam na sua terra de origem, na região de Sobradinho, e também do meu avô, que era de Carinhanha, Bahia. Lembro nitidamente dos dois pés de umbú, com pequenas folhas verdes claras; dois pés de pinha; um pé de jaca, duas jaboticabeiras, sendo uma no jardim de fronte para a rua; uma goiabeira, um pé de cajá-manga e outro de cajazinho; três mangueiras, uma espada e duas rosa; dois ou três mamoeiros; um grande abacateiro; e finalmente a minha preferida, a arvore de tamarindo, não pela fruta, que não gostava por ser muito azeda, pela pela sua aparência de superioridade, galhos firmes, escuros, estirirados e que avançavam por cima dos muros vizinhos. Era o quintal dos sonhos de qualquer criança, no qual criei até um filhore de tatu, por pouco tempo, encontrado na estrada pelo meu meu pai. Nesse quintal também havia uma pequeno depósito feito de madeira e corbeto com telha, que serviu para o primeiro espaço de bricadeiras de oficina, escritório e que depois se tranformou num clube. Nessa época eu era escoteiro e já tinha visto no cinema o filme Os Meninos da Rua Paul, inspirado na obra de Ferenc Molnár, jornalista e escritor húngaro. A escola fica quase ao lado de casa e dava para escutar o sino de aviso para formar filas no pátio.


Meu avós maternos vieram para o Porto Tibiriçá nos anos 1920 como retirantes e não se conheciam. Nessa época Epitácio não existia. Só surgiria com a chegada dos trilhos ferroviários que avançavam além da serra de Batucatu. Antes disso, no incío do século, toda a região oeste paulista era selvagem. Quando chegaram, meu avô foi trabalhar nas obras da Estrada de Ferro Sorocabana e minha avó como empregada doméstica na casa de Guilherme e Manoela Borges. Com o passar tempo eles adquiriram uma casa vizinha na rua Cuiabá, de madeira, que alugavam para ajudar nas despesas. Eles, Maurício e Maria, tiveram cinco filhos, duas mulheres e três homens. Dois desses filhos eram solteiros e moravam conosco nesse período. Também passavam algumas temporadas no sítio, que se chama São Guilherme, nome provavelmente escolhido pela minha avó Maria para homenagear o padrinho Guilherme Borges, que nessa altura da vida vivia em Presiente Prudente, separado de dona Manoela Borges. Seu Guilherme Borges aparece nos relatório de viagem do Dr. Adolpho Lutz, numa expedição cientifica de 1913 entre Tibiriçá e Guaíra, no rio Paraná. O sítio durou cerca de 30 anos, quando as terras daquela região foram inundadas pela usina hidrelétrica de Porto Primvera, formado um lago de 16 quilômetro no rio Paraná. Meu avós voltaram a morar em Presidente Epitácio, onde terminaram seus dias.


O sítio deles na Reta A-1 era uma propridade de 51 alqueires que tinha como vizinhos alguns sitiantes e também fazendeiros, com terras com o tamanho de 600 a 800 alqueires, que no Mato Grosso era contado como 48 mil metros quadrados cada. Um deles era Seu Faustino Azenha, também proprietário do primeiro cinema de Epitácio. Os varjões dominavam as fazendas, enquanto os sítios foram ocupados em local mais alto e seco. Durante as noites era possível ver uma imensidão de vagalumes e, no varjão, o movimento misterioso de uma pequena feixe de luz prateada, muito forte e rápida, se escondendo e aparecendo na vegetação baixa. “fogo fátuo”, para os céticos, efeito da decomposição orgçanica de animais; ou boitatá, espíritos da mata, para os caboclos pirangueiros.


A primeira casa do sítio na Reta A-1 foi feita de madeira, duas águas, com tábuas verticais. Não tinha varanda, nem forro e os quartos faziam parede com um paiol de milho e ferramentas. O fogão era de tijolo e revistido de vermelhão. O piso era de chão batido. Os banheiros eram externos e feito também com tábuas de madeira, um com fossa; e outro só para banho, com piso de tijolos. Não havia eletricidade e a água era retirada de um córrego que ficava em frente, a uns 15 ou metros da casa. Era o Córrego da Anta, que tinha vários pontos largos e estreitos e desaguava no rio Paraná.


A segunda casa do sítio era pré-moldada e foi adquirida quando houve a oferta de muitas delas, do canteiro de obras do DNER, durante na finalização da contrução Ponte sobre rio Paraná, ligando São Paulo a Mato Grosso. Era de madeira também, telhado de uma água e não tinha banheiro. Mas tinha forro, vidraças e assoalho de madeira. Tinha uma pequena varanda nos fundos. Na cozinha foi feito um piso de de cimento queimado, com vermelhão, assim como um novo fogão de tijolos. No quintal havia o banheiro, o sanitário e um poço artesanal, cuja a água passou ser ser retirada com bomba a óleo Diesel. Haviam árvores relativamente grandes ao redor da casa, oferecendo sombra nos dias de sol.


A terceira casa do sítio também foi feita de madeira, para que fosse ocupada por um dos meus tios, que casou e foi morar lá co a sua jovem esposa. Lá tiveram tiveram dois filhos e algum tempo depois foram cuidar da vida em outros lugares. Acredito que foi o melhor período da nossa infância , onde passávamos as férias e feriados longos. Foi onde aprendi a nadar, jogado por esse tio, de surpresa, numa lagoa formada pelo córrego e que fica numa fazenda vizinha. Ele teve sucesso na sua intenção de ensinar algo que se deve aprender sozinho. Foi ele também também que me ajudou a comprar meu primeiro carro ( uma Brasília 77), vendida por ele em longas prestações. A placa era de Bataguassu-MS e as multas tomadas em São Paulo nunca chegavam para pagar, pois não havia comunicação de dados entre os Detrans do estados. Esse meu tio me vendeu um segundo carro, também meio na faixa, um Gol BX 82 à àlcool. Algum tempo depois depois, adquiri um Passat 79, comprado em Osasco, que usei algum tempo em São Paulo e depois tornou-se para mim um marco de negócio. Era um carro veloz e confortável, embora já bastante usado. Passando férias em Epitácio, li um anúncio no único jornal local, que era semanário, ví que alguém havia colocado uma casa à venda, na rua Curitiba. Era um jovem borracheiro que queria se mudar da cidade e quando viu o Passat ficou alucinado. Paguei uma pequena diferença e fiquei com a casa. Tinha como vizinhos um funcionário do Banespa, vindo de Santo Anastácio; e uma famíla antiga e amiga de Tibiriçá.


A outra casa de material , dos avós paternos, ficava ao lado da antiga agência dos Correios e também da Delegacia dos Portos, da Marinha de Guerra. Esse dois prédios, geminados, petenciam ao meu avô, também aposentado da SNBP, mas não era sitiante. Complementava a aposentadoria com alguéis, incluido a primeira casa que construíram antes dessa fomos morar. Essa casa era mais moderna e espaçosa, com amplas varandas na frente e nos fundos, além de uma garagem comberta. Esse meu avô nasceu da região do Vale do Paraíba (São José dos Campos) , mas viveu algum tempo no Rio de Janeiro. Soube da transformação causa pelas ferroas no interior de São Paulo e foi tentar a sorte no Porto Tibiriçá, trabalhando num hotel. Minha avó era imigrante húngara, que veio com os pais e irmãos em 1924 para povoar a Colônia Arpad Falva, que ficava entre Presidente Epitácio e Caiuá. Eles se conheceram nos bailes que eram realizados na colônia e frequentados por rapazes e moças da região. Iam à pé ou de trem. Carlos e Verônica (Vera) tiveram também cinco filhos, dois homens, incluindo meu pai, e três mulheres. Após a aposentadoria em Tibiriçá , se fixaram em Epitácio , onde também terminaram seus dias. Uma curiosidade, esse meu avô faleceu durante uma viagem ao Rio de Janeiro, quando tentava uma colocação para o meu tio – o caçula- nos quadros da marinha mercante. Os corpos dos meus avós alguns tios e também do me pai estão enterrados em Presidente Epitácio, num espaço público denominado Cemitério da Igualdade, no qual as sepulturas são todas no chão de terra e coberta por grama ou flores, tendo apenas uma simples placa de mármore, com a identificação dos mortos, sem nenhuma exceção.


Nessa casa ficamos apenas alguns meses, pois meu avô havia falecido há alguns anos e minha avó morava sozinha. Em 28 de março de 1974 mudamos para São Vicente, já que meus pais continuavam em regime de disponibilidade da SNBP, podendo escolher algumas cidades onde houvesse serviços do Ministério dos Transportes. Escolheram São Vicente de olho no Departamento Nacional de Portos e Vias Navegáveis, em Santos. Não chegaram a trabalhar nesse setor, pois aposentaram-se antes de serem chamados. Mesmo assim, trabalhavam em outras empresas, para complementar a renda. Éramos seis filhos homens, um com três meses de idade, dois pré-adolencentes e dois quase adultos.


ESQUINA



Em 1972 meus pais viviam um momento de agonia pessoal, uma crise familiar e ao mesmo existencial que exigia mudança de rumos. Mesmo recebendo seus salários do serviço público, eles tentavam ampliar os ganhos e horizontes em busca de algo melhor para todos. Vivíamos modestamente, mas não era suficiente. Meus avós ajudavam. E como. Precisava acontecer algo diferente e que provocasse uma mudança no roteiro de nossas vidas. Nossa Madrinha Manoela tinha morrido um ano antes e um sentimento de orfandade tomou conta da famíla. Ela era madrinha dos meus avós, dos meu tios, dos nossos primos e de muitas pessoas na cidade. Isso acentuou a nossa crise familiar. Meu pai trabalha em serviços extras e até teve um bar em sociedade com o amigo muito querido na cidade. Era um imigrante espanhol. Minha mãe tentou um negócio de cosméticos. Outro amigo, empresário da panificação, queria que ele assumisse de vez a gerência do negócio, pois queria passar um longo tempo em Portugal. Meu pai tocava a padaria durante essas férias do amigo, mas não era isso que ele queria. Minha mãe não sabia o que ele queria e talvez nem ele próprio sabia. Era uma insatisfação indecifrável. Mas ele tinha dívidas. Contas urgentes a pagar. A agonia aumentou, apesar da ajuda de parentes e amigos muito caros. Numa manhã de sábado ele saiu de casa para ir bar conversar com os amigos, os de sempre. Nada de diferente. Veio almoçar e saiu de novo. Quando voltou entrou em casa apressado com um sorriso estampado no rosto, uma alegria diferente. Dirigiu-se ao quarto, abriu a porta do guarda- roupa e pegou algo que estava guardado no bolso de um paletó. Geralmente ele guadava dinheiro e maços de cigarros da marca Continental, sem filtro. Naquela dia não foi cigarro nem dinheiro, quer dizer era outro tipo de dinheiro. Pegou o que procurava e saiu com a mesma pressa com que havia entrado. Minha mãe estava na sala e corri até ela para perguntar o que tinha acontecido. Ela me respondeu, também sorridente: “Seu pai ganhou na loteria”. Ele tinha vindo pegar os bilhetes que tinham sido premiados no sorteio da Loteria Federal. Eram três pedaços com final 84. Touro, no jogo do bicho e também signo dele. Depois soubemos que ele tinha encomendado um bilhete inteiro, mas o vendedor de loteria só tinha três pedaços. Deixou com ele e prometeu voltar com mais dois pedaços até fim do dia. Não apareceu. O prêmio foi de 65 mil cruzeiros. Uma festa na cidade, apesar da quantia modesta, pois no ano anterior um empresário havia ganho 350 mil, um verdadeira fortuna. A sorte rondava as ruas de Epitácio. Na segunda-feira, quando cheguei na escola para entrar na fila da minha classe, a professora anunciou o que todos já sabiam. Ela estava feliz de verdade, enquanto a escola inteira olhava para mim. Eu acreditei naquele instante que realmente havia ficado rico. Foi uma sensação maravilhosa e indescritível. Nunca tive tantos amigos e admiradores mirins. A vida seguiu. Meu pai pagou as nossas e outras contas, ajudando alguns amigos, comprou uma Kombi zero quilômetro – lembro até hoje do cheiro de plástico e de novidade que ela tinha – comprou uma casa e não quis comprar um sítio que estava á venda, próximo do sítio do meu avô. Minha avó Maria , que era sogra dele e fã do programa do Zé Bétio foi quem tinha sugerido a compra. Não ouviu o conselho porque era da sogra e talvez não conhecia o ditado repetido diáriamente pelo grande apresentador sertanejo: “Quem compra terra não erra”. Mas restaram a Kombi e a casa. A Kombi nos levou a uma viagem de férias em Praia Grande, na vila Tupi. Foi quando conheci o mar e tudo que os turistas conhecem na orla da Baixada Santista. Voltamos encantados. Passamos na ida e na volta por dentro de São Paulo. E minha voltou da viajem com algumas ideias na cabeça. Meu pai continuou deslumbrado e preso a Epitácio; e minha mãe em busca de alguma outra transformação mais importante e outra alegria diferente daquela que estava no seu sorriso quando me de a notícia do prêmio loteria.


A casa comprada ficava na equina na rua Curitiba com a rua Guanabara, há apenas duas quadras de onde morávamos. Fomos ver e voltamos alegres, pois enfim , depois de tento tempo teríamos a nossa própria casa, e de esquina. Era uma casa simples, de madeira com tábuas horizontais e paredes duplas e ocas, para frescor no verão e calor no inverno, no estilo dos bangalôs americanos, com varanda e garagem. Uma graça, muito bem conservada com tinta à óleo. Era verde musgo por fora e creme por dentro. Tinha ainda um terreno anexo, todo arborizado, onde havia um pomar. Perfeito para brincar. Durante o mês inteiro eu pegava as chaves e visitava a casa até duas ou trê vezez ao dia, para ver ou mostar para alguns colegas. As visitas terminaram algum tempo depois quando soubemos que meu pai havia vendido a casa. A crise voltou ou estava no seu processo contínuo, não concluída. Durante algum tempo, já adolescente e vivendo em São Vicente, me via morando sozinho nessa casa. Lembro que nessa fantasia tinha um Mini Bug na garagem e na sala tinha uma garrafa de licor de menta. E uma namorada linda, que depois soube que tinha se casado e mudado para bem longe de Epitácio. Esqueci tudo isso quando comecei descobrir as praias de São Vicente e lugares interessante em Santos.


Tivemos que mudar da casa dos meus avós paternos e fomos morar na casa da avó paterna, dona Verônica, que há pouco tempo tinha perdido a sua mãe, a nossa bisavó Maria Szucs, que não falava uma única frase em português. E nenhum de nós falava húngaro e só nos comunicávmos com ela por gestos e olhares. Era a vó Santa, pois ela usava um lenço azul escuro na cabeça que lembrava as imagens de santas da Igreja. Ela pegava nas nossas mãos e dizia muitas coisas, sempre sorrindo, dando conselhos e fazendo observações, que advinhávamos com os seus olhares vivos, sobre as coisas do dia a dia. Como a miha vó, elas tinha olhos azuis. Corrigindo, a vó Santa ainda se lembrava de algumas frases em português quando tocava o telefone (aqueles aparelhos negros e pesados). Chegava perto do telefone, não tirava do gancho, e gritava: “Não tem ninguém”!!! Quando ouvia trovões, advertia: “Sokat esik az eső”, está chovendo por aí, na tradução da vó Vera.




XII
SOBRADINHO



Não tínhamos sofás nem camas. Só colchões e livros em pilhas para sentar. Era um tempo em que as coleções de livros faziam parte do acervo das casas. Tínhamos Jorge Amado, José de Alencar, Machado de Assis, a Gramática de Jânio Quadros (num mini suporte de madeira imitando o Congresso Nacional) , José Mauro de Vasconcellos e o Trópico Ilustrado, enciclopédia colorida, para substituir as caríssimas Delta e Britânica. E alguns livros espíritas, pois sempre tinha alguém pedindo emprestado e não devolvia, porque pedia para emprestar para outra pessoa. Nossa mudança se resumia numa geladeira, fogão, botijão de gás, enxoval de família e roupas pessoais. Uma TV Colorado RQ garantia a diversão de todos, com a novela Fogo sobre Terra, com Juca de Oliveira e Dina Sfat, sucessora de Selva de Pedra.


São Vicente e toda a região tinha um cheiro diferente de tudo conhecíamos, uma mistura de maresia e gases emitidos pelas indústrias químicas de Cubatão, sobretudo à noite. O que mais me fascinana nesso horário era ver as lanternas vermelhas sobre os edifícios altos da orla e, no céu, a luz alaranjada emitida dos bicos de fogo das torres da refinaria da Petrobrás.


Foi uma semana de incertezas e expectativas. Minha queria morar em Paulo e pai não queira sair de Epitácio. São Vicente foi o meio termo. Um alívio para os dois e uma grande aventura para todos.


Estávamos instalados num sobrado na rua Uberaba, sem garagem, no Jardim Independência. A avenida Prefeito José Monteiro não tinha calçamento, como nehuma outra rua do bairro, exceto a Anita Costa, que tinha paralelepípedo. As pedreiras próxima aos morros funcionavam a todo vapor com explosões de dinamite de manhã e à tarde. Poucos meses depois fomos morar na rua Rio de Janeiro, numa casa maior. Uma rua cheia de famílias como a nossa, com muitos filhos e de olho no futuro. Havia nessa rua um conjunto residencial que se chavama Verde Oliva, onde moravam muitos militares que serviam no Batalhão de Caçadores no Cascatinha. Ainda estávamos no regime militar e isso influenciou até na mudança do nome do bairro, que antes se chamava Vila da Misericórdia. A construção do Oliva exigia um nome mais apropriado e cívico, então homenagearam assim o Sesquicenário da Indpendência.


Chegamos em março e não encontramos vagas nas escolas da cidade. Fomos estudar em Santos, numa escola na avenida Ana Costa (Dino Bueno), que fica ao lado do grande orfanato fundado por Anália Franco. Íamos sozinhos, de ônibus. De vez em em quando combinávamos de não descer no ponto e seguíamos em direção ao centro, para conhecer a área portuária, principalmente a rua General Câmara. Também pegávamos outro ônibus e íamos até a Ponta da Praia, ver o movimento de navios no canal do porto. Uma vez fomos até a cidade Ociam , em Praia Grande. A Ociam foi um empreendimento de Roberto Andraus, que foi prefeito de São Vicente e construtor paulistano. Minha mãe descobriu tudo e conseguiu transferir a gente para uma escola de São Vicente. Ensino noturno na E.E. Vila Sorocaba, na avenida Antônio Emmerich. Tínhamos aulas de francês com um professor chic e bastante amigável, Constant Luciano Hulmond, que depois de morrer se tornou nome dessa escola, na Vila Melo.

Meu irmão mais velho fazia faculdade em Santos e o outro, quase adulto e músico, foi se aventurar no Araguaia, tocando em bailes e boates. Depois voltou e os dois trabalhavam com pesquisadores do IBGE e da Lista Telefônica. Nessa época a grande fonte de empregos eram as empreiteiras que construíam a rodovia dos Imigrantes. Mudamos para casa vizinha, um pouco mais nova, geminada com a casa de uma família de alemães muito educados e divertidos. O patriarca e filho mais velho trabalahavam na Volkswagem, em São Bernardo do Campo. E tomavam muita cerveja, entregue pelo caminhão de uma distribuidora. Naquela época só tinha lata de Skol , chamada skolzinha, que eles não gostavam, por ser “aguada”.


Foram dez anos de mudanças intensas. Meu pai foi trabalhar numa plataforma de petróleo, em Campos, empresa de hotelaria a serviço da Petrobrás, em turno quinzenal. Meu irmão mais velho foi para São Paulo trabalhar como designer industrial, depois de um estágio na COSIPA.

No final da década de 1970 e inicio dos anos 80 a família mudou-se para São Paulo. Minha mãe ainda precisa realizar uma parte importante do seu projeto de vida. E conseguiu. Morar e trabalhar em Sampa, cidade que ela adorava. Eu ainda fiquei mais um ano e fui o última a sair da casa, com lágrimas nos olhos, para ir morar num apartamento no Gonzaga. Um amigo carioca e engenheiro, me arranjou emprego numa fábrica, onde fiquei dois anos enquanto iniciava da faculdade História em Santos. No primeiro dia de trabalho vi na rodovia Anchieta o rescaldo do incêndio da Vila Socó, com dezenas de mortos. Vi também uma ação de uma grande frota de ônibus de funcionários da Cosipa evacuando moradores da Vila Parisi, após a propagação de um nuvem baixa de amônia que escapou de uma fábrica de fertilizantes. Cubatão era um grande risco para todos. No ano seguinte ocorreu a na Índia a tragédia de Bopal, numa fábrica química, que tinha um filial em Cubatão. Foi nessa época também que a Rohdia, outra multinacional desse ramo químico, construiu na área Continental de São Vicente cavas para depositar lixo tóxico produzido no polo industrial de Cubatão. As cavas só foram descobertas e denunciadas na imprensa quando milhares de família invadiram esses terrenos para construir moradias, no Rio Branco e no Parque Continental. Aquela região teve em 30 anos um salto de 3 mil par 150 mil habitantes, entre 1990 e 2020.


XIII
RAPOSO



São Paulo passou por todas as mudanças urbanas cem anos antes da maioria das cidades brasileiras, com exceção do Rio de Janeiro, que foi o modelo de reformas no início do século XX, importado tardiamente das mudança ocorridas em Paris e Londres. A diferença é que na capital paulista as coisas aconteceram numa velocidade industrial, admiravelmente acelerada, tanto que não foi apenas descrita pelos cronistas e poetas, mas também pelos antropólogos, historiadores e geógrafos franceses que vieram dar aulas nos primeiros anos da criação da USP. As transformações aconteceram na cidade e também nos arraiais que rodeavam a Capital, as antigas “freguesias”, acomodadas em fazendas, sítios, chácaras , nos vales das pequenas serras e nas margens e várzeas dos rios. Esses núcleos ainda rurais receberam as primeiras ferrovias e depois se tranformariam em “largos” dos bondes e finalmente nos viadutos e estações do metrô. O anúncio de um loteamento, por mais distante que fosse, era suficiente para causar uma inquietação nos moradores recém chegados e que se aglomeravam nas pensões e cortiços do centro da cidade. De alguns poucos milhares de habitantes em 1900, São Paulo reuniu, em pouco mais de 50 anos, centenas de bairros e numa infinidade de vilas, quase 15 milhões de habitantes .


Como vimos, uma segunda crise familiar nos levou a São Paulo entre 1984 e 1985. Uma prole essencialmente masculina não se desgruda do seio materno com tanta facilidade. Não tínhamos irmãs nem cunhados. Isso dificultou as coisas e retardou as mudanças. As noras que foram chegando tiveram que se adaptar ou se afastarem. E nós permanecíamos. Nosso destino foi o Butantã, bairro que um dia foi bem afastado da área central e que depois abrigou a enorme glema onde foi construída a Cidade Universitária e seus institutos e faculdades. Ficamos no entorno, entre Osasco e o Morumbi, tendo como acesso principal a rodovia Raposo Tavares, no Km 6. Ironia do destino, pois essa rodovia acabava 640 quilômetros depois em Presidente Epitácio. Ocupamos três apartamentos de um então novo conjunto residencial chamado L”Abitare, com torres modernas de 13 andares, contruidas numa pequena floresta à margem da rodovia. Tinha piscinas e parques que nunca usamos. O condomínio oferecia aluguéis baratos e tinha como atrativo principal um hipermercado instalado em frente da portaria, do outro lada das pistas, mas que dava acesso a loja por uma passarela de pedestres. Na medida que a demanda pela compra de apartamentos foi aumentando os aluguéis se tornaram altos e fomos obrigados a migar para o outro lado da rodovia, num pequeno e mais modesto condomínio; e depois numa grande casa de três pisos na Vila Gomes, muito próximo ao Jardim Bonfigliolli. Nesse período eu já havia passado como empregado de uma loja de instrumentos musicais, na avenida Rebouças e concluía meus estudos na PUC. Dava aulas numa escola da avenida Paulista e nas filiais espalhadas em vários bairros de classe média: Paraíso, Aclimação, Pinheiros, Lapa, Santo Amaro, Morumbi e finalmente Alfaville. Minha mãe decidiu voltar para Epitácio, preocupada com a insatisfação do meu pai com a cidade. Vivia trancado em casa e se recusava a se integrar no ritmo alucinado, de sair de casa às cinco da manhã e voltar à meia noite. Lembro que tentamos comprar um apartamento na Freguesia do Ó, mas meu pai não queria ter vínculos com São Paulo. Anos mais tarde eu voltaria, casado pela segunda vez, para morar na Freguesia. Ele queria voltar para sua terra natal e conseguiu. Porém, morreu apenas quatro ou cinco meses depois de terem se mudado. Nesse tempo minha mãe morou em três casas em Epitácio.


Permaneci em São Paulo num apartamento na rua Eusébio de Queiróz, no Paraíso, quase Aclimação. Era horrível, me sentia muito só e perdido. As namoradas moravam sempre longe e queriam casar pra mudar de vida. Moravam tão longe que eu não sabia voltar depois de levá-las em casa. Isso me assustava. Eram vínculos muito frágeis, na minha visão e, vendo o que acontecia com muitos colegas, desistia rápido dessas relações. Já estava entrando na casa dos 30 anos e algo mais instintivo me dizia que já estava na hora de começar a pensar num prolongamento da raiz genética misturado com o receio da solidão. Foi então que comecei a pensar numa moradia fixa, em um ninho, sem pensar muito na ideia de que teria que atrair uma fêmea que estivesse passando pela mesma crise. Voltei a pensar na casa da esquina em Epitácio, agora sem mini bug e licar de menta, mas com cerveja, whisky, vinhas e conhaque. Adquirir um imóvel em São Paulo, do jeito que eu queria, fantasia de cinema, era praticamente impossível. Morar na periferia, nem pensar. Achava que era um sofrimento desnecessário, embora milhões de pessoas levassem uma vida tranquila e feliz no arredores da cidade e também nas cidades vizinhas. O problema era eu. Adorava São Paulo mas estava me sentindo deslocado. Teve uma época que me tornei expectador do programas sobre negócios. Fazia lanche numa pequena pastelaria perto do Centro Cultural São Paulo, de um ex-funcionário do Metrô. Pronto, aquilo se tornou uma referência e partir para o sonho empreendedor. Meus alunos do colégio do Morumbi e de Pinheiros, só falavam nisso e vinham me pedir conselhos. Eu fingia que entendia porque via as tendência no programa de TV e na revistas especializadas. A moda eram as pizzarias e outros pontos de alimentação fast-food, locadoras de vídeo e o lava-jato. Só se falava em franquias. Numa viagem que fiz com um colega ao Paraguai, na volta passamos em Epitácio e via que acidade estava vivendo momento de euforia: termas de águas quentes, muitos funcionáros da CESP e de grandes empreiteiras mudando para a cidade. Tive então a ideia de ter uma franquia da nossa escola. Éramos professores na mesma escola. Ele não quis e acabou indo morar no Canadá, onde vive até hoje. Eu fiquei com esse pensamento, embora nem soubesse por onde começar. Mais isso não foi problema. Em menos de dois anos, eu um dos meus irmãos, já estávamos com um escola funcionando em Epitácio, usando a franquia , sem concorrentes e com muita chance de crescermos também na região. Foram seis anos de entusiasmo e depois um retundante fracasso. O que valeu a pena foi voltar a morar na cidade onde havia nascido, vivido a minha infância e parte da adolescência. Voltar a ouvir o silencio das ruas e a paisagem do rio foi deslumbrante. Meus avós ainda viviam e tínhamos muitos parentes e amigos que também haviam voltado pelos mesmos motivos. Queriam dar um tempo ou viver ali definitivamente.


Quando troquei o Passat pela casinha de madeira na rua Curitiba senti que as coisas poderiam acontecer, não do jeito que eu imaginava, mas aconteceriam de alguma forma. A casinha foi transformada numa casa maior, a partir de uma barracão rural, com piscina, edícula e área grande área de lazer. Tudo simples, mas muito de bom gosto. Interessante que os pisos eram muito caros na época e optamos pela ardósia escura, que combinou muito bem com a construção que lembrava as pousadas rurais e de praia. As pessoas passavam enfrente de casa e só faltavam ser convidarem para entrar e ver o que tínhamos feito. Queria mais. Queria uma chácara e um grande tereno para construir uma instalação escolar mais adequada. Comprei do meu avô um terreno de dois mil metros quadrados. Fiz lá um barracão de obras com madeira e telhas de uma casa demolida que minha mãe havia adquirido através de um consórcio. A ideia dela era construir uma nova casa no tereno. Nunca foi feita e ele acabou devolvendo o terreno. Incrível como as coisas não se concretizam quando não são feitas de forma adequada às regras e à natureza desse negócio. Depois dessa estadia em Epitácio, finalizada por uma nova crise, tomei o rumo de Campo Grande uma cidade que conhecia e visitava com frequência. Ali vivi pouco mais de um ano, tempo de uma campanha eleitoral iniciada em março e concluída em novembro.





ÍNDIOS



Numa ocasião estávamos visitando uma exposição de objetos indígenas no salão da A.A. Epitaciana e tivemos uma experiência muito curiosa: uma mulher de uns 25 anos de idade, com fortes traços indígenas percorria o salão falando sozinha, pronunciando frases aparentemente desconexas. A pessoa que estava conosco reclamou que estava sentindo um sono incontrolável e nós mesmos não parávamos de bocejar. Enquanto isso a mulher reclamava em voz alta, na língua tupy, e fazia gestos de indignação. Percebemos, então, que não se tratava de uma pessoa com problemas mentais. Na exposição havia objetos funerários de cemitérios indígenas encontrados durante as obras da CESP na região e recolhidos por pesquisadores. A mulher provavelmente estava mediunizada e, de forma agressiva, protestava contra aquela exposição, para ela uma violação de coisas sagradas do seu povo. Lembramos que alguns anos antes, quando esses objetos foram encontrados e levados pelos pesquisadores da Unesp, escrevemos no jornal local um pequeno artigo sobre o fato reclamando que os objetos deveriam permanecer em Epitácio. Na época fomos repreendidos por algumas pessoas que achavam que não havia necessidade para tanta hostilidade com os pesquisadores. Entendemos, naquela exposição, o que estava acontecendo. O mundo espiritual e mágico dos índios ainda estava bem vivo e fazendo cobranças sobre o desrespeito com as suas tradições. O sono e os bocejos não eram efeitos do acaso. Objetos sagrados e antigos possuem saturações magnéticas poderosas, produto psíquico dos cultos e crenças que ficam impregnados sobre os mesmos. Sempre temos esse tipo de sensação quando entramos em sebos de livros, antiquários e museus. Móveis usados e roupas de brechós também possuem essas cargas magnéticas, sobretudo peças de pessoas que já desencarnaram. Várias pessoas já nos confessaram ter a mesma impressão. Naquele dia tivemos receio de que poderia acontecer algo parecido com o caso dos arqueólogos ingleses que violaram o túmulo de Tutancâmon, no Egito. Eles foram sendo misteriosamente mortos por doenças contagiosas, talvez causadas pelo fato de terem alterado magneticamente suas defesas naturais. Pensamos, para nos tranquilizar: deve ser somente um protesto.


Ainda continuamos convictos que, mais cedo ou mais tarde, toda essa dívida dos colonizadores deverá ser resgatada. Uma enorme legião de espíritos silvícolas que no passado foram violentamente expulsos de suas terras, em todo o Brasil, em diversas épocas, agora faz parte de um grande movimento social de reocupação de seus antigos territórios assaltados pelos antigos posseiros e “bugreiros”. Os descendentes dos posseiros, hoje também organizados em entidades ruralistas, se reencontram com antigos inimigos para ajustar velhas contas que não foram pagas. No estado de São Paulo essa trama cármica está concentrada principalmente no Pontal do Paranapanema, antigo cenário dos violentos massacres (Dadas) dos posseiros ali introduzidos pelos conquistadores mineiros no século XIX, como foi o caso de José Theodoro de Souza. Antigos contendores como fazendeiros, missionários, bugreiros, funcionários públicos e líderes indígenas hoje estão reencarnados em diferentes papéis e posições como fazendeiros, juízes, promotores, políticos, líderes dos MST, cada qual cobrando o que lhe é devido ou resgatando seus antigos débitos. Recentemente, por meio de notícias mediúnicas dadas por uma guia espiritual, atuante nessa região, fomos informados de que a construção de presídios no Pontal, os conflitos fundiários e jurídicos, a formação de quadrilhas de criminosos para explorar a prostituição, as drogas, extorsão, roubos ao patrimônio público e privado, fazem parte de um grande processo de reajuste cármico de Espíritos, índios, caboclos e aristocratas rurais que ali cometeram graves crimes em outras épocas. O mesmo tem ocorrido no Paraná, Santa Catarina, Mato Grosso do Sul e região Norte e deverá ocorrer com mais ênfase onde se efetivaram os genocídios históricos. Alguns desses compromissos cármicos são mais antigos, com no caso da grande região de Guarapuava (PR). Na época imperial, em 1811, o governador da capitania de São Paulo, António José da Franca e Horta (responsável pela comarca de Paranaguá – o Paraná não havia sido criado) implantou uma política sócio-educativa judicial que incentivava e até impunha o casamento misto entre os condenados e índias, já que havia uma enorme desproporção entre homens e mulheres naquela vasta região. A ideia da medida era povoar o mais rápido possível esse território disseminando as famílias sertanejas. Assim, a cidade recebia degredados brancos (a maioria homens mestiços) e estes, sem opção de parceiras sexuais, contraíam vínculos afetivos e matrimônio com adolescentes indígenas, passando a formar famílias miscigenadas. Muitos desses degradados entravam em confrontos violentos com índios que não aceitavam essa imposição e se tornaram membros de grupos de bugreiros. Chamou particularmente a nossa atenção nessa trama geopolítica o caso de oito desses degredados, relatado pelo historiador Fábio Pontarolo (Homens de Ínfima Plebe). Eram militares que se rebelaram em Santos (SP), em 1821, por causa dos baixos soldos e que haviam promovido uma quebra-quebra na cidade. Condenados, foram obrigados a residir nessa então isolada e distante colônia paulista. Eram em sua maioria analfabetos e tinham em torno de 19 anos de idade. Curioso lembrar que nessa região (Cantanduvas) foi construído recentemente um importante presídio federal, destinado a abrigar criminosos de alta periculosidade, considerados como verdadeiros inimigos públicos. Espiritualmente, pela lei de afinidade, os presídios funcionam como escolas de reajuste tanto para condenados como para os que ali trabalham direta ou indiretamente em função deles.


É fato que muitos espíritos criminosos (indígenas e brancos) já voltaram e ainda voltarão “reencarnados” nas boas famílias da região, em posições socialmente invertidas, para acertar essas contas com as pessoas e com a sociedade que lhe causaram prejuízos materiais e morais. Esse fenômeno também vem acontecendo nas três Américas, quando muitos indígenas maltratados e corrompidos pelos colonizadores voltam como filhos problemáticos das mesmas famílias que os prejudicaram no passado ou então como imigrantes. Muitos deles se tornam criminosos em ações contra o Estado ou contra as instituições que os humilharam. Geralmente são autores de tragédias terroristas e ações violentas em estabelecimentos públicos. Na América espanhola foi registrado os conhecidos casos dos caudilhos, ditaduras militares, revolucionários marxistas e mais recentemente os célebres guerrilheiros que se tornaram narcotraficantes, com foi o exemplo do grupo indígena Sendero Luminoso, de antiga tradição indígena. Ernesto “Chê” Guevara foi um típico “branco” de alma indígena destinado a lutar até morte pelos seus ideais socialistas, porém intimamente vibrava nele um sentimento de vingança contra as injustiças cometidas nos tempos coloniais. Os mais célebres criminosos dos EUA eram antigos líderes africanos e indígenas reencarnados entre os imigrantes irlandeses e sicilianos radicados na América do Norte.


A presença de descendentes diretos dos colonizadores portugueses na ocupação dessa região também não foi uma coincidência. A nossa ligação com São Vicente também não é produto do acaso. Era de lá que partiam as primeiras expedições bandeirantes em busca da riqueza do interior. Como a maioria dos habitantes de Epitácio, sou descendente de migrantes nordestinos (negros e mestiços) e imigrantes europeus. Meus pais casaram-se em 1954. Em 1955 nasceu meu primeiro irmão, Carlos Maurício; em 1957 nasceu o segundo, Hélvio; em 1958 nasceu o terceiro, Guilherme; em 1959 nasceu o quarto, Nilton. E finalmente, pelas mãos da velha parteira espanhola de Santo Anastácio, Dona Dolores, foi a minha vez: em 23 de agosto de 1961, às 5:30 da manhã, há apenas alguns horas antes da famosa renúncia de Jânio Quadros.


Minha mãe teve cinco meninos, em casa, sem frescura e sem cesariana. Nossas parteiras foram Dona dos Anjos, migrante do sertão de Minas; e Dona Dolores, espanhola de Santo Anastácio. Em 1973 nossa família adotou um menino, Natalino, vindo de uma numerosa família de ribeirinhos do antigo Porto XV, do lado sul-mato-grossense do rio Paraná. Coisas do “destino”. Todos esses nascimentos foram supervisionados pela “Madinha Manoela”, bem como os primeiros e melhores anos de nossas existências. O Dr. Alberto era o médico da família, aliás, de todas as famílias. Era pioneiro na cidade e um excelente clínico geral, de boa memória. Perguntava pra gente quem eram os pais, deduzia quem eram os avós e dava o diagnóstico.


Maurício Xavier Duque e Carlos José dos Santos, meus avôs, eram negros. Maria Pesqueira Duque era descendente de portugueses e índios; e Verônica Szucs imigrante húngara da Colônia Arpad. Próximo a Caiuá, a 16 quilômetros de Epitácio, existiam várias colônias européias. Na colônia Arpad as Igrejas também eram diferentes, uma ortodoxa e a outra romana. Meu bisavô paterno, Marcus Szucs, era comerciante, dono de armazém e de um alambique. Gostava de uma boa cachaça e também era músico. Nessa Colônia húngara aconteciam bailes nas noites de sábado, frequentados pelos meus dois avôs frequentavam. Meu avô Maurício, baiano de Malhada, tinha fama briguento e sempre arrumava muita confusão nesses bailes. O “carioca” Carlos dos Santos (tinha sotaque porque havia vivido no Rio por alguns anos) era um gentleman, sempre vestia ternos de linho branco impecáveis. Era culto, político e sempre atento aos acontecimentos que geravam oportunidades. Foi juiz de paz, vereador, proprietário de um cinema em Tibiriçá e articulista de jornal. Foi ele quem iniciou nossa família no Espiritismo. Na casa dele, onde se faziam reuniões mediúnicas, tinha uma estante com livros de Allan Kardec e muitas outras publicações espíritas, distribuídas na região pelo ativista João Pitta e também por João Machado, de Santo Anastácio.


CASA DE MAÇOM




Como é a experiência de morar na casa de pessoas estranhas? Pessoas amigáveis, mas estranhas? Minha mãe passou por isso.


Aos 12 anos mudou-se de Tibiriçá e foi estudar em Santo Anastácio, uma cidade fundada e colonizada por espanhóis no oeste paulista. Piada velha, porém ainda válida para quem não conhece o lugar. Quando alguém da região diz que é espanhol ou conhece algum espanhol, logo é questionado: “ Mas é espanhol da Espanha ou de Santo Anastácio”? Uma cidade católica, conservadora e também componentes anarquistas, do tipo “Hay gobierno? Soy contra! Também não acreditam bruxas, mas tem muitos que afirma que elas existe sim. Lá também tinha espíritas e maçons. Foi na casa de um deles que a minha mãe foi morar. Seu João era daqueles espíritas antigos, cultos e que via a doutrina como uma conspiração dos céus para mudar o mundo e as pessoas. Era grão mestre da maçonaria. Não se sabe se Allan Kardec era maçon , mas recebia cartas de maçons de vários lugares do mundo, inclusive do Brasil. Isso está registrado na Revue Spirit, publicada no século XIX. Minha Madrinha Manoela dizia: “Daqui até Baurú não tem ninguém maçom com grau igual ao dele”. Seu João também gostava de política, para humanizar um pouco sua difícil vida de celebridade espiritual e esotérica. A esposa aceitava tudo de bom grado e com respeito, menos a política. Quando chegava a época da eleições ela já ficava preocupada e nervosa. Minha mãe descobriu isso quando alguém passou em frente da casa deles e gritou com toda força: “ João de merda”!!! Era uma tentativa da oposição em desmoralizá-lo na vizinhança. Estratégia baixa e inútil , pois todo mundo o conhecia e muitos o admiravam e entendiam que era somente política.


Por que a mudança para Santo Anastácio?


Minha mãe tinha mediunidade desde pequenina. Via Espíritos, geralmente de s velhos barbudos sorrindo e dizendo as coias que ela deveria saber e fazer. Conversava com eles e presenciava fenômenos físicos como luzes fortes e vidraças estilhaçadas. Dona Manoela, com que morava, era católica fervorosa, de irmandade mariana; e seu marido, Guilherme Borges, era muito medroso com essas coisas, evidentemente porque também era médium. Dois idosos que perderam uma filha jovem criando uma criança com poderes paranormais. Isso não seria um problema grave se ela fosse ajudada e instruída. Foi então que eles se lembraram do amigo João, que era representante de revistas e jornais, e também divulgador de obras e publicações kardecistas. Ele era também amigo do meu futuro avô paterno, Carlos José, que também era espírita. Daí surgiu a ideia de levá-la para estudar em Santo Anastácio, numa escola pública, e receber as primeiras noções doutrinárias de espiritismo no centro espírita frequentado pela família do Sr. João. A casa dele era repleta de livros e símbolos da iniciação maçônica. Apesar e ainda ser uma criança, seu João chamava minha mãe de “Dona”. Após as refeições ele olhava para a pequena hóspede e dizia, olhando para o monte de louças e talheres sobre a mesa: “É, Dona, é nessas horas que os filhos estranham os pais”!


Minha mãe conta que este foi um período muito bom, de boas lições e excelentes amizades. Conviver em lugares estranhos e com pessoas que não são da nossa esfera familiar, diz ela, nos obriga a mudar de pensamentos e sentimentos sobre as coisas, e principalmente de hábitos. Não aprendeu muito da doutrina naquela época, por falta de maturidade, mas saiu daquela casa sabendo que sem estudos e disciplina nada funciona. Quando chegasse a hora da verdadeira iniciação ela saberia identificar a oportunidade. As iniciações dos núcleos espirituais e esotéricos geralmente são muito parecidas e primam pelos mesmos princípios: o iniciado precisa vencer seus medos e superar sua limitações por meio de provas morais, provadas pelos mestres ou pela própria vida, por meio dos testemunhos. A maturação e depuração do discípulo acontece por meio de regras de conduta: silencio, sigilo, olhar, alimentação, obediência e serviço ao próximo. Tudo isso promove gradualmente a sua iniciação, na qual ele se transforma em fases ou graus que revelam sua purificação e desprendimento do mundo dos sentidos: a Lama (desejos), a Água (esforço para não se sujar) e finalmente a Luz (libertação). Ela recordou que, lendo certa vez uma reportagem sobre uma novidade doutrinária na Federação Espírita do Estado de São Paulo chamou sua atenção a fotografia de um velhinho falando com gestos dramáticos a aplicação de passes magnéticos ensinados em aulas especiais para iniciados. Era o Coronel Edgard Armond explicando o funcionamento da Escola de Aprendizes do Evangelho. Armond era mestre-maçom e diretor da Federação. Essa ainda não era a oportunidade esperada. Ela só iria acontecer muitos anos mais tarde, em São Vicente, quando uma vizinha a convidou para assistir uma aula inaugural da Escola de Aprendizes do Evangelho, dada por Jacques Conchon, falando do tema “Os Exilados de Capela”. Jacques também foi fundador e um dos diretores do CVV-Centro de Valorização da Vida, que naquele ano de 1977 iniciava sua expansão pelo Brasil. Era o início da nossa iniciação espiritual e também de engajamento na luta pela prevenção do suicídio.




CIGARRO DE VACA



Os mendigos e andarilhos são pessoas muito interessantes, cheios de tiradas engraçadas e declarações extravagantes. Não têm eira nem beira e não se importam com isso. Alguns são filósofos natos e os restantes são apenas pessoas comuns que cometeram suicídio, como todos os outros. Suicidas vivos, que romperam os laços com a vida pessoal, familiar e social. Disseram adeus para suas vidas e não querem mais saber de nada, de ninguém e principalmente de si mesmos. Andam sem rumo e sem a mínima noção de tempo e espaço. Às vezes para. Olham para o céu, para os lados e seguem em frente num caminho que nunca termina. Não gostam de olhar muito tempo para os rostos e olhos alheios e logo desviam os olhos, porque têm medo de se verem no outro. Certa vez, em frente na casa do meu sogro, em São Paulo, vi rapaz andarilho, trajando restos de um terno e descalço. Barba e cabelos enormes. Sorria, cumprimentava, mas não gostava de conversar. Vendo minha admiração, meu sogro comentou esse rapaz era gerente banco, trabalha numa agência ali na Lapa. De uma hora para outra ficou assim. Fez tratamento, tomou remédios, mas não adiantou nada. Seus pais moram aqui perto, mas vive na rua. Some por uns tempos e depois volta, mas não entra dentro de casa. Sempre dorme na rua. Vendo esta cena, lembrei de quando morávamos em Epitácio, na época que ainda existiam os trens de passageiros.


Às 21 horas toca o apito do último trem da Sorocabana. Era o BG, bagageiro, com vagões de última classe, trazendo para estações os indesejáveis da Capital e todas as estações que antecediam a de Presidente Epitácio. A Estação do Porto, como era conhecida, era última daquele ramal. Fim de linha. Fim de mundo. Eram os passageiros que trafegavam com passes da assistência social. Gente de todos os tipos, famílias de retirantes, trabalhadores pobres, alguns caixeiros-viajantes que tinham que fazer suas economias; e dezenas de indigentes que eram empurrados de cidade em cidade, esperando-se que desaparecessem e nunca mais voltassem. Desembarcavam na estação em situação de despejo do trem. O chefe da estação nessa altura da noite já estava dormindo e nem tomava conhecimento do que acontecia, a não ser numa excepcionalidade. Só o bar da estação permanecia aberto, na esperança de vender algumas doses de pinga para uma clientela já conhecida. Esse grupo descia do tempo e fica parado por algum, desorientados, aguardando algum tipo de ordem ou informação. Aos poucos eles iam se dispersando, procurando algum tipo de acomodação, geralmente os bancos do jardim ou então seguia pelas ruas na direção do Albergue do Centro Social São Pedro, que ficava na Estrada Boiadeira Sul. Ali poderiam tomar bando, alimentar-se e talvez ser encaminhados para as fazendas onde tinham colheitas de algodão ou serviço de capinagem de roça e que aceitavam alguns colonos. Não eram todos. Parte deles nem ia para o Albergue porque já sabia que não tinham capacidade para o trabalho. Preferiam ficar esmolando pelas ruas. A maioria queria ficar e outros preferiam seguir na direção da ponte e conseguir carona para o Mato Grosso. Eram atraídos pela selva, como se ali pudessem consumar suas mortes nessa vida perdida e suicída.


Nesses horários de chegada de trem as famílias ainda estavam acordadas, conversando nas varandas ou nos bancos de madeira em frente das casas, enquanto as crianças aproveitavam o fim da noite para brincar de pique-esconde ou um jogo de bola. Era nesse momento que surgiam pelas ruas essas pequenas hordas de pedintes, suplicando comida e atenção. Uns traziam malas e roupas amarrotadas, tentado manter um pouco de dignidade. Outros eram maltrapilhos que já haviam desistido de tudo, carregando sacos com coisas que ganhavam ou achavam. Outros só carregavam o corpo. Os primeiros gostavam de conversar, mostrar suas habilidades e suas ideias, lembranças dos últimos botecos em que foram proibidos de entrar por absoluta falta de dinheiro e de argumentos. Esses paravam em frente das casas, batiam palmas, faziam suas saudações e pediam um prato de comida ou o tradicional pão velho. Lembrei da mãe de um amigo nosso, Dona Remédios, que sempre atendia essa pessoas com respeito e carinho. Preparava uma farta refeição e aguardava para recolher de volta o prato e o talher, que guardava só esse fim. E ouvia pacientemente as histórias que eles contavam. Nós à vezes brincávamos com os mais alegres, debochando dos seus trejeitos e ideias. “The house, the house”, dizia um jovem alto, magro e barbudo, demonstrando habilidade de falar inglês. E sabia mesmo muitas palavras e expressões, que pronunciava com um tom aristocrático, do qual ríamos inconsequentes. Uns tinham o pavio curto e transbordavam mal humor. Oferecíamos cigarros de palha com fumo amarelinho, que aprendemos a fazer com a Tia Teodora e que fumávamos escondido. Eles aceitavam a novidade, tragavam e aguardávamos as reações de agradecimento e também de crítica: “Cigarro de vaca esse heim”, reclamou um deles bem nervoso. E quando rimos, saiu xingando e cuspindo. E um dos meus irmãos, ofendido, discutiu com ele: “Além de ganhar ainda que exigir”? A Madrinha Manoela não gostava dessas brincadeiras, ficava sentida, mesmo rindo de algumas das reações mais estranhas. Ela aproveitava essas situações para nos ensinar coisas importantes da vida. “ A gente não poder tratar essas pessoas desse jeito, porque a gente nunca sabe quem eles são. Pode ser um ladrão, um assassino, uma pessoa infeliz que não deu certo na vida, coitados. E pode até ser Jesus. É, às vezes Jesus se disfarça de mendigo, para ver como a gente se comporta”. Era a forma que ela encontrava para desconstruir aquela cenas deploráveis nas quais pessoas chegam ao fundo do poço e ela não aceitava que aquela pudesse existir. Quando ela percebia que estávamos enfraquecendo os argumentos dela com os nossos olhares de deboche, ela logo reagia com um história dramática sobre Jesus causando alguma surpresa muito grave ou então uma onça que atacava as famílias e roubava as crianças. “Certa vez, disse, ela, “Jesus chegou disfarçado de mendigo numa casa e pediu abrigo, chovia e fazia frio. A dona da casa, desconfiada, consentiu mas colocou-o num chiqueiro no fundo do quintal, forrado de palhas de milho. Ele aceitou a oferta e ali dormiu profundamente. Acordou tão cedo, que não poder nem agradecer. Só deixou um sinal de cruz na porta do chiqueiro. Muito anos depois a mulher ficou doente. Tinha um coroço no seio e soube que iria morrer. Orou para que Jesus a salvasse e que lhe desse um sinal de cura. Naquela noite ela teve um sonho idêntico a visita do mendigo. Na despedida do outro dia, ele olhou para um dos seios dela e viu que estava inchado e vermelho. E disse: “Vá até o chiqueiro e faça uma lama com a terra que está sob as palhas onde dormi. Esfregue a lama e seu seio vai ser curado para sempre”.


TAÇAS DE SANGUE


A casa da rua Curitiba era todas de madeira, mas tinha de aspecto aristocrático. Foi feita com a intenção parecer a casa de alguém importante, um pouco acima do terreno, assentado sobre uma base de tijolos. Se tivesse feito com as tábua horizontais teria fica bonita e mais imponente, pois tinha uma pequena varanda com muretas de tijolos, onde sempre tinhas duas ou três cadeiras de fio coloridos de nylon. Varanda para receber visitas nas estações quentes e ver o movimento da rua. A madrinha Manoela recebia ali suas amigas e afilhados para longas conversas. Também dali nos repreendia quando havia excessos nas brincadeiras de rua e provocações aos andarilhos e mendigos que vinham da estação em direção ao Albergue Noturno. Mas o construtor preferiu a posição vertical das tábuas, para acentuar a impressão de que ela tinha a altura dos palacetes. Era bem construída, mas não conseguiu se impor como moradia aristocrática como desejava o primeiro morador. Foi uma casa de muitos donos e muitos moradores e agora pertencia a um comerciante espanhol, proprietário de dezenas de casas de aluguel espalhadas pela cidade e que lhe rendiam um bom dinheiro. Nos fundos tinha um alpendre bem espaçoso e aberto, protegido por treliças de ripas do piso até o teto, que também tinham a função de garantir a ventilação nos meses mais quentes. O alpendre tinha tanque e varais de arame, que eram mais baratos e resistentes, separa a cozinha de dois quartos de dispensa enormes, tão grande que somente um deles era usado por nós, ficando o outro sempre vazio. Era nesse que eu sempre arrumava um jeito de transformá-lo em um banco, uma oficina de consertos de roupa e sapatos e escritórios diversos. Lembro que tinha um quintal com árvore, mas gostava muito. A cerca de um dos vizinhos era de tijolos, mas a outra era de ripas pontiagudas, feitas de sobras de madeira das serrarias, deixando expostos os dois quintais.
Foi nesse quintal ao lado que aconteceu uma coisa muito estranha. Varrendo sob as árvores e juntando as folhas caídas das árvores a vizinha encontrou junto a cerca alguns objetos que lhe causaram espanto e medo, parecendo peças de um trabalho de feitiço. Eram, segundo ela recipientes que lembravam taças de rituais de magia, contendo um líquido vermelho que parecida sangue de porco ou galinha. Não tinha velas, porém sob as folhas que se acumularam sobre a terra havia colheres de chá, ainda brilhantes e que não teve coragem de tocar. Afastou-se assustada concluindo que aquilo tudo estava ali há muito tempo, pois estava impregnado de areia barrenta. Não contou para o marido, para deixá-lo preocupado.


Passado alguns dias, ainda intrigada, ele chamou minha mãe, quando esta voltava, no final da tarde, da nossa loja de cosméticos. Pensou ante disso: ela é espírita e poderá explicar melhor o que isso e ajudar-me a procurar ajuda, para não ofender a quem quer fosse e que tinha feito aquilo, sabe por qual motivo. Também não queria forçar o marido a ter que mudar para outra casa, pois moravam ali há poucos meses. A casa tinha ficado vazia durante muito tempo e então aproveitaram para fazer aquilo que estava lá, próximo da nossa cerca. Por isso, também ficou na obrigação de alertar minha mãe. Depois de relar tudo para minha mãe convidou-a para ver o que passava. Aproximaram-se da cerca e percebeu que a expressão facial da mãe mudou rapidamente. Parecia estar transtornada, chegando a dar umas gargalhadas, o que deixou a vizinha ainda mais intrigada e com medo. Depois de alguns segundos de concentração, minha mãe comentou decepcionada:


- Então foi isso. Agora entendi. Não acredito que isso realmente aconteceu.


E veio a tão esperada explicação.


As taças eram realmente taças de plástico verde, com fundo branco. Tinham desaparecido misteriosamente da minha casa há algum tempo. O líquido vermelho não era sangue e sim restos de gelatina de cereja, que derreteu com a chuva que havia caído há dois dias e encheram as taças com água vermelha. As colheres também tinham desaparecido, sem nenhuma explicação. O mistério das taças de sangue estava resolvido, para alívio e alegria da vizinha. O material do feitiço foi recolhido e reconduzido para o seu lugar de origem, para servir de prova para uma nova investigação. Era preciso descobrir quem foi o autor do delito. Já adianto que na fui eu. Não teria coragem de fazer essa patifaria. Minha vó Maria diria que era uma grande cachorrada. Na verdade minha mãe já sabia de quem se tratava, pois o leniente havia cometido o mesmo delito na loja durante o período em minha mãe viera em casa para almoçar. Pediu desculpas, despediu-se da vizinha e entrou em casa disposta a desmascarar a farsa. Todos reunidos na sala, menos meu pai, que nunca se metia nos negócios educativos da minha mãe. A curiosidade da sobre o assunto da reunião era intensa, pois quando acontecia algo daquele naipe certamente iria rola uma surra espetacular. Em pé e de chinelo na mão ela dirigiu olhar para o meu irmão mais velho e perguntou com voz firme: “Cadê o dinheiro do caixa que eu deixei na loja hoje manhã. Ele não respondeu, mas tremeu nas bases, arregalando os olhos. “Vou repetir só mais uma vez: cadê o dinheiro”? “Também quero saber onde estão as minhas taças e colheres de gelatina que sumiram aqui de casa”?


Dessa vez ele já estava deitado no chão chorando e implorando para não apanhar: “Eu confesso, eu confesso”. “O dinheiro eu paguei coxinha e refrigerante pra todo mundo no bar do Bernardino”.


Depois de duas chineladas bem fortes, ele afrouxou e veio a outra confissão:


“Eu comi todas as gelatinas e joguei no quintal da casa aqui do lado”.


O assunto foi encerrado com mais algumas chineladas marcantes e uma ordem irreversível para ir para o banheiro e ficar lá até a hora de dormir, com a luz apagada.


Todos sabiam que ele morria de medo de defunto e escuridão. Tava armado o complemento do castigo. Não tive dó. Afinal, ele fez a mesma coisa comigo depois que, numa noite, eu fiquei perturbando todo mundo fingindo que estava passando e tendo falsos soluços. Disseram pra eu parar e não parei. Fui para o banheiro, levado cruelmente por ele. Fiquei lá um tempão. Não tinha medo do escuro e naquele dia não lembrei de nenhum defunto.


VELÓRIOS



O pior de todos os medos e o medo dos defuntos. Esse é um medo que dói, dizia minha mãe. Ficar sabendo de uma pessoa que morreu porque já estava doente não dá medo, mas de peoas que morrem de forma súbita ou trágica é diferente. Causa uma impressão forte em nosso espírito e algumas pessoas ficam perturbadas, à vezes por dias e meses. Dizem que essas pessoas são médiuns e essa impressão acentua a sensibilidade natural deles, passando as captar mentalmente as impressões dos outros também a agonia dos que morreram.


Na infância eu não resitia de curiosidade ia aos velórios observar tudo o que estava acontecendo, em detalhes. Quando começava a escurecer, ao entrar no banheiro para tomar banho, já ia ficando transtornado, pois sabia que a noite em claro ia ser longa. Não conseguia pregar os olhos e fica revendo as cenas do velório e a imagem do morto com os olhos fechado dentro do caixão. Minha mãe percebia, ficava brava , mas logo vinha me socorrer.


Meu irmão mais velho era pior do que eu, pois ele ficava impressionado com todo mundo que morria, gente da cidade e gente famosa que aprecia nos jornais. “Mais que diacho, o homem tá longe e nem sabe que você existe”, dizia minha vó tentando consolar ele, mas não tinha jeito. O chacra gástrico começava a girar tão fortemente, aumentando a sensação de frio na barriga e todo fica em estado de desequilíbrio.


Tinha umas simpatias ousadas para resolver esse problema, como levar o medroso ao velório e fazer ela tocar no defunto e dizer umas palavras,etc. Mas no caso dele parece que isso só piorou. Eu nunca fiz isso. Eu heim!


Hoje perdi o medo, sei me controlar, mas não vou em velório. Quando vou, não entro na Câmara Ardente (olha o nome do lugar). Se tiver que entrar, entro e não olho na cara do sujeito. Nessas horas sempre tem uns cretinos que chegam perto da gente e falam: “Você viu a cara dele? Tá escura”. Puta merda.


Mas os enterros são interessantes, menos agressivos, psicologicamente falando. O silêncio dos passos e das vozes das pessoas andando pelas alamedas da necrópole, as sepulturas curiosas e tal. Evito ir também.


Os antigos ensinam que, depois de um velório, o melhor é passar em algum lugar antes de volta pra casa; ir numa praça, numa loja, para apagar as impressões negativas das cenas fúnebres. O bom mesmo é não ir.


Na minha casa só teve um velório, o da minha Madrinha Manoela. Foi tranquilo, na sala. O problema é que fiquei um seis meses sem passar sozinho por ali, ou passava correndo, acendendo as luzes.


Realmente não posso ir nesses lugares. Já tive várias vezes a impressão de sentir um cheiro forte de rosas e também de carniça. Têm pessoas que morrem e não sabem que morreram e ficam pedindo ajuda aos medrosos, pois sabem que nós são os únicos que levam eles à sério.


Tijolo fabricado na olaria da  Cia de Viação SP-MT no Porto Tibiriçá. Foto Gui Duque.

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